segunda-feira, 15 de junho de 2015

A Sétima Torre - Boa vizinhança

Antes de tudo, certifique-se de ler o anterior
PARTE 1 - A Sétima Torre - No Princípio

Eu não consigo recordar qual é exatamente a primeira memória que eu tenho do meu pai, mas quando me esforço ao máximo para lembrar-me dele no mais profundo recanto das imagens de minha infância vejo ele no escritório fazendo contas com uma calculadora, fumando e ouvindo João Gilberto ou Erasmo Carlos. Mas o detalhes mais característico dessa lembrança é o cheiro da fumaça dos cigarros que se amontoavam no cinzeiro. Meu pai fumava quase dois maços de Continental por dia e quando a marca parou de circular, ele acabou trocando sob muitos protestos pelo Marlboro que ele dizia ser uma marca de mulher. Talvez por isso ele passou a fumar ainda mais.

Essa primeira memória que tenho de meu pai está diretamente associada a última que tenho: ele já muito velho, magro com seus poucos cabelos já grisalhos totalmente irreconhecível deitado numa cama quase morto. Ele lutou por quatro anos bravamente contra o câncer, mas nunca conseguiu parar de fumar.  E nem isso me fez deixar de herdar o hábito e o vício dele.

Eu também fumava quase um maço de Marlboro por dia e, embora tenha tentado parar por mais vezes que eu posso contar, eu continuava mesmo depois de duas cirurgias e não sei quantas sessões de quimioterapia quando os médicos praticamente disseram que deveríamos desistir e o mandaram de volta pra casa e montamos uma UTI na velha fazenda. Nesses dias, ele não parecia nada com o homem bem humorado e brincalhão que sempre foi. Ele agora estava cada dia mais ranzinza, rabugento e reclamava com tudo o tempo todo. Enquanto pode, andava para cima e para baixo arrastando um cilindro de oxigênio num carrinho cujas rodinhas rangiam de maneira insuportável. Você poderia saber onde meu pai estava mesmo a quilômetros de distância graças ao barulho das rodinhas e aquela tosse que parecia que só iria acabar quando ele vomitasse os próprios pulmões, mas mesmo assim ele encontrava maneiras de se esconder pela casa e roubar um cigarro meu aqui e ali. É triste dizer, mas foi um alívio quando ele já não podia mais andar.

Pouco tempo depois, ele faleceu. Há muito já não parecia mais com qualquer coisa que consideremos viva, mas o destino quis que ele morresse oficialmente na noite de 20 de Abril de 2003, meu aniversário de 30 anos. Talvez um irônico castigo do destino devido ao fato de eu não ter parado de fumar mesmo vendo meu pai naquele estado, talvez sentenciando meu próprio filho ao mesmo destino de ver seu pai definhando numa cama e até mesmo repetir os mesmos erros e ter o mesmo sentido.

Em vida, ele um grande pai, um bom marido, mas a sua relação mais íntima era com o dinheiro. Tudo o que ele tocava tornava-se ouro. Ele tinha a capacidade fantástica de multiplicar qualquer investimento, tinha uma visão fora do normal, mas talvez o seu conservadorismo o tenha impedido de chegar mais longe. Meu pai era um homem à moda antiga, nunca gostou de computadores ou telefones celulares. Até mesmo a máquina de escrever sofria com seu olhar de desprezo e desconfiança. Quando morreu, meu pai nos deixou uma empresa, vários imóveis e investimentos variados e, até então em minha vida, dinheiro nunca foi uma preocupação.

Embora o mais intenso sonho de meu pai fosse me ver um dia herdando todo o seu legado e tomando controle dos negócios da família, eu sempre tive planos diferentes com os quais ele nunca concordou. Me formei em Jornalismo e sempre quis ser um escritor, mas ele sempre achou isso pura perda de tempo. Minha irmã tomou o próprio caminho, mas ele não se importou muito. Logo cedo, ela saiu de casa, tornou-se independente e bem sucedida, já eu nunca saí da sombra de meu pai totalmente. Trabalhava com ele administrando os negócios mentindo para mim mesmo que era algo temporário enquanto traçava planos que nunca cumpri. Por essas diferenças, eu e meu pai nos odiamos bastante antes dele adoecer. E quando isso aconteceu, pela primeira vez, senti-me realmente motivado a assumir o comando do legado que meu pai construiu.

Uma pena que eu falhei miseravelmente.

Assim que ele morreu, eu me vi totalmente perdido e não sabia como administrar o patrimônio, como investir, contratar, organizar ou liderar. Em dois anos, a empresa estava quase quebrada e já tínhamos esgotado quase todas as reservas de capital que ele havia deixado. Desesperado, busquei ajuda de um velho sócio dele, seu braço direito em todas as suas decisões em vida. Os detalhes são menos importantes, o que é vital nessa história é que saibam que acabei confiando demais nesse homem e ele acabou me passando para trás. Sorrateiramente, tomou pra si boa parte do patrimônio que meu pai deixou, o controle da empresa, quase todos os fundos de investimentos restantes, imóveis e automóveis e durante anos travamos uma ferrenha disputa judicial pelo controle de todos esses bens. E é meio triste dizer isso, mas felizmente ele faleceu há alguns anos e sua esposa - uma pessoa muito mais racional e serena - soube tratar do assunto de maneira mais justa e chegamos a um acordo proveitoso para ambas as partes. Mas voltemos aos tempos de vacas magras.

No ano de 2007, eu havia posto tudo a perder, não havia mais nada, estava quebrado e com o orgulho extremamente ferido. Quando sofri o golpe, não me restou quase nada e me vi obrigado a vender a própria casa onde eu morava e me mudar para o último imóvel de meu pai que não estava ocupado por inquilinos ou tomado pelo sócio: o apartamento 1602 da Torre 7 do Condomínio Residencial Bandeirante numa cidade do interior do Estado.

Em Julho daquele ano me mudei com minha esposa e filho para o apartamento onde tia Ofélia morou até morrer. O apartamento que meu pai sempre quis vender, mas nunca conseguiu. A região tinha se desvalorizado, o condomínio estava quase todo desocupado, a imobiliária responsável estava prestes a declarar falência e um novo shopping tinha interesse na região. O objetivo do projeto inicial era ser um escape para a classe média, mas alguém planejou algo errado e a região não prosperou, pelo contrário: todo o entorno do bairro foi tomado por favelas o que desvalorizou brutalmente o investimento.

Quando eu finalmente me mudei, não pensei muito na minha primeira experiência naquele lugar mais de vinte e cinco anos antes. Parecia apenas uma turva lembrança de criança distorcida pela minha imaginação fértil e perdida entre tantas outras memórias mais relevantes. Mas a partir do momento em que abri a porta pela primeira vez, tudo aquilo que eu passei quando tinha oito anos de idade voltou de maneira avassaladora. No primeiro momento em que o piso de madeira rangeu sob meus pés, eu lembrei do garoto do sexto andar, da água escura e daquela coisa que eu vi ou acredito ter visto. Mas nada disso importava, eu era um homem feito, um pai de família, um adulto que não deveria se amedrontar por traumas de criança e coisas que eu nem tenho certeza se realmente aconteceram.

Mas o fato é que eu morei naquele apartamento por apenas cinco meses por motivos dos quais eu nunca falei até então. Motivos que fizeram com que eu questionasse minha sanidade.

Naquele tempo, eu estava dedicado a escrever meu primeiro romance e vivia uma momento de muita fertilidade criativa. Ideias pipocavam o tempo todo na minha cabeça e eu passava a maior parte do tempo em casa na frente do computador escrevendo e captando informações. Eu escrevia, editava, excluía, recomeçava. Para um pouco, tomava um ar, bebia um café, assistia TV, fumava cigarro, saía para dar uma volta. Todo o processo natural pelo qual todo escritor passa. Foi numa dessas saídas que eu comecei a notar: minhas coisas nunca estavam no lugar onde eu as deixava.

Eu deixava as minhas chaves na prateleira do quarto e elas apareciam penduradas no chaveiro da sala. Eu trazia uma caneca com café e leite para o escritório e a colocava em cima da mesa, mas quando percebia ela estava numa mesa diferente daquela na qual a deixei. A princípio, achei coisa pouca. Ninguém em casa percebeu algo estranho e eu era o que menos saía. Meu filho tinha sete anos passava o dia entre escola e aulas de natação e judô. Minha esposa na época era professora de dança e quando não estava trabalhando provavelmente estava com meu filho em algum lugar. Mas foi numa manhã de sábado que algo realmente me atormentou.

Eu queria sair para tomar um ar, sentar no jardim que havia do lado do edifício, ver um pouco do sol e decantar minhas ideias, mas não conseguia encontrar minhas chaves. Eu já tinha desistido quando deitei de novo na cama e ouvi o familiar barulho do metal, típico de molhos de chaves. Elas estavam dentro da fronha do meu travesseiro e eu não fazia ideia de como foram parar ali. Eu me lembro de deixá-las por cima de qualquer lugar, mas não havia como aquelas chaves terem ido parar ali. Obviamente eu fiquei assustado e impressionado, mas em momento nenhum associei ao fato de o escritório ficar repentinamente frio durante as madrugadas em que eu estava escrevendo ou como todo o encanamento parecia contorcer-se e gerar um estupendo barulho por toda a casa principalmente à noite. Nem me lembro de contar quantas vezes eu tive que tirar os fones de ouvido por ter pensado que ouvi alguém chamar meu nome.

Também nunca associei isso à insuportável crise de tosse de um dos vizinhos que poderia ser ouvida mesmo com a TV ligada.

Me lembro muito bem do dia em que eu percebi que havia algo muito errado acontecendo naquele lugar. Haviam apenas três semanas desde que nos mudamos e eu estava passando por uma crise criativa depois de ter escrito quatro capítulos quase que sem interrupções. Minha esposa havia insistido muito para que eu fosse com ela para São Paulo no final de semana e depois de muito discutirmos, ela resolveu ir sem mim. Ela levou o garoto e eu fiquei sozinho naquele apartamento onde um dia Tia Ofélia andou arrastando seus chinelos para lá e para cá. Eu não podia ir, estava tendo um grande surto criativo e precisava escrever tudo o que eu conseguisse no menor tempo possível. E quando eu falo de surtos, são eventos realmente anormais como acordar no meio da madrugada e sair da cama para escrever ou começar a fazer anotações em qualquer pedaço de papel antes de perder uma ideia. Todos os nossos boletos de contas, revistas, jornais, catálogos, agendas e livros eram rabiscados de cima a baixo, vítimas de meus ataques compulsivos de criatividade. Mas assim que eles passaram pela porta e foram embora, toda a criatividade se foi.

A noite foi caindo, o céu lá fora escurecendo e eu fiquei não sei por quanto tempo na frente do computador sem acrescentar uma nova linha ao que estava escrito. Eu estava claramente bloqueado quando o cenário tornou-se mais dramático no momento em que eu percebi que só tinha mais um cigarro no meu maço de Marlboro. Ainda não eram nove da noite quando tomei coragem de ir buscar novos maços. Havia uma loja de conveniência num posto de combustíveis bem perto do condomínio, mas mesmo assim apanhei as chaves do carro - que agora estavam no lugar certo - pelo simples e preguiçoso hábito metropolitano de ir de carro a todo lugar e tendo fé absoluta de que se um dia fizerem automóveis que caibam no banheiro, sairei da cama para dar uma cagada atrás do volante.

Vesti um casaco pois era Julho e fazia muito frio e eu não lembrava onde tinha deixado meu isqueiro. Como eu estava com pressa e sem um pingo de paciência, passei na cozinha e peguei uma caixa de fósforos longos. Saí do apartamento e no corredor enquanto girava a chave duas vezes para trancar a porta da sala, ouvia aquela tosse áspera e seca do vizinho que parecia ainda mais alta e insuportável do lado de fora. Guardei as chaves, chamei o elevador e não pensei muito nisso.

Havia uma fila bem comprida e uma atendente com quase nenhuma vontade na loja, então levei certo tempo. Aproveitei para comprar refrigerante e um monte de porcarias para comer durante a madrugada enquanto tentava recuperar meu ritmo de trabalho. Não levei mais de meia hora entre o momento em que saí de casa e o momento em que entrei de novo no elevador, dessa vez indo para cima ao invés de para baixo.

Quando a porta se abriu no décimo sexto andar, o silêncio absoluto pairava no ar e a luz branca da lâmpada florescente do corredor parecia fosca e opaca. Eu enfiei minha chave no buraco da fechadura e destranquei a porta quando ouvi de novo a tosse forte e seca, mas dessa vez ela vinha acompanhada de um rangido metálico, o tipo de som produzido pelo atrito entre duas superfícies metálicas oxidadas.

Eu olhei para a esquerda antes de abrir a porta e vi alguém vindo pelo corredor.

Era um velho magro e pálido vestindo uma camisa de botões. Cabelos grisalhos e a pele manchada. Ele tossia como se não houvesse amanhã e arrastava junto com ele num carrinho de metal um cilindro de oxigênio. A tosse afobada pela máscara de inalação, o barulho ensurdecedor da rodinha do carrinho se movendo pelo corredor. Ele chegava perto enquanto eu o fitava e ele me olhava de volta fixamente como se estivesse vendo um fantasma. Ele se aproximou, abriu a porta do 1601, entrou e desapareceu quando ela se fechou.

Entrei em casa, fechei a porta atrás de mim, encostei as costas nela e praticamente desabei no chão. Caí sentado largando as sacolas de compras no chão com a respiração ofegante como se tivesse corrido seis maratonas. Consegui abrir um dos novos maços e enfiei um cigarro na boca, mas minhas mãos tremiam tanto que quando eu abri a caixa de fósforos para acender, acabei derrubando todos pelo chão.

Meu pai havia morrido há quatro anos, mas eu tinha acabado de vê-lo entrando no apartamento 1601.


Eu fiquei um bom tempo sentado no chão dizendo para mim mesmo o que aquilo não era possível. Talvez eu tivesse dormido muito pouco ou realmente era uma pessoa muito parecida com ele. Mas não podia ser, não tão parecida. Eu não sabia se minha razão se perdia ou se eu a encontrava minutos depois quando resolvi levantar do chão, cuspir o cigarro e sair do apartamento.

Eu cheguei ao corredor aos tropeços e apertei insistentemente a campainha do mil seiscentos e um. Apertei a campainha, bati na porta, gritei. Eu esmurrei a porta, tentei abri-la em vão. Ninguém me atendia, mas eu podia sentir alguém do outro lado me observando através do olho mágico, me pregando uma peça cruel e desesperada. É como se eu pudesse sentir outra pessoa respirando através das fibras da madeira daquela porta. Algo tão vivo quanto eu, mas nem um pouco humano como nós. E eu ainda ouvia aquela tosse seca e que parecia não acabar nunca.

Voltei para dentro de casa, tranquei a porta e interfonei no 1601. Eu podia ouvi-lo tocar de dentro da minha casa, mas ninguém atendeu. Depois telefonei na portaria quase em prantos. Pedi que ligassem para o dezesseis-zero-um que eu queria falar com qualquer pessoa que estivesse lá para me atender. Inventei uma história confusa e meio estúpida sobre o barulho e até citei a tosse que eu ouvia, mas a resposta em tom irônico do porteiro não foi bem uma surpresa:

"Cê tá de brincadeira? Você é o único morador do andar inteiro."





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